“Sabeis qual é o jejum que eu aprecio? Diz o Senhor Deus: é romper as cadeias injustas, desatar as cordas do jugo, mandar embora livres os oprimidos e quebrar toda espécie de jugo. É repartir seu alimento com o esfaimado, dar abrigo aos infelizes sem asilo, vestir os maltrapilhos, em lugar de desviar-se de seu semelhante. Então, tua luz surgirá como a aurora e tuas feridas não tardarão em cicatrizar-se; tua justiça caminhará diante de ti, e a glória do Senhor seguirá a tua retaguarda. Então às tuas invocações o Senhor responderá, a teus gritos dirá: Eis-me aqui!” (Is 58, 6-9a).
Esse texto do profeta Isaías pertence ao conjunto da literatura profética pós-exílica, na qual os oráculos geralmente reclamavam uma interiorização da prática da Lei, ou seja, uma adesão plena e sincera do crente, para que os compromissos preceituais não se tornassem mero ritualismo. Nele, o autor indica que o verdadeiro jejum é a prática da justiça e da caridade e suas consequências são, entre outras coisas, a cura das feridas (cf. v. 8) e a resposta imediata de Deus às orações do justo (cf. v. 9).
Percebe-se, portanto, que o profeta dá um conselho – ajudar aos pobres – com uma motivação: para ser atendido por Deus nos pedidos. A asserção segue a linha da mentalidade do povo de Deus no Antigo Testamento, que julgava ser o cumprimento da Lei o pré-requisito para que o Senhor lhe volvesse o olhar. Em outras palavras, o homem do Antigo Testamento acreditava que a salvação vinha do cumprimento da Lei e disso dependia ser escutado em suas orações.
É importante perceber que o oráculo contém uma centelha de transitoriedade, o que é próprio do Antigo Testamento.1 A economia do Novo Testamento, paradoxalmente, ressalta que todo homem só é justificado em Cristo, que sua salvação não depende das obras da Lei (cf. Rm 3,27-28) e que a obra em si mesma não contém a caridade (cf. 1Cor 13,1-3). Destarte, para aplicar o texto de Isaias à realidade presente, será preciso considerar que o conselho permanece, mas não sob a mesma motivação, pois Deus parece responder às orações mais por Sua misericórdia do que por mérito do orante.
Quais seriam então, na realidade presente, as consequências da prática da justiça e do serviço aos pobres, já que os orantes não dependem diretamente disso para ser ouvido por Deus em seus pedidos? Não é muito difícil responder a essa questão: o serviço aos pobres deixa de ser para que a oração do agente seja ouvida e passa a ser para que a oração dos pobres seja atendida. Os pobres, que padecem de todos os males referidos pelo profeta, rezam constantemente a Deus – seja expressamente ou pela própria situação – para que Ele os livre do sofrimento. Que resposta poderia ser dada por Deus se não uma interferência direta? E isso Ele o faz por meio dos que se comprometem com os pobres.
Deus escolheu os seus “santos” para interferir no mundo. Assim, eles são a resposta do Senhor às orações dos pobres. Em outras palavras, eles são a providência do Pai em favor dos filhos mais sofridos. Portanto, repartir o pão, recolher em casa o desabrigado e vestir o nu, torna-se uma atualização da fala divina: “Eu vi, eu vi a aflição de meu povo (…) e ouvi os seus clamores (…). Sim, eu conheço seus sofrimentos. E desci para o livrar…” (Êx 3,7-8a).
A meu ver, isso deveria fazer parte da espiritualidade de todo cristão, especialmente daqueles que atuam em projetos de promoção humana: ser, ele mesmo, providência de Deus para a vida do outro mais necessitado. difference cialis levitra Se a motivação dada por Isaias não é mais oportuna, seu conselho se tornou mandato. Ir aos pobres significa identificar-se de modo intrínseco com a missão da Igreja. Não se trata somente de ação, mas de doação que assemelha profundamente o crente a seu Senhor.
Em Jo 8, 12 Jesus diz: “Eu sou a luz do mundo”. Em Mt 5,14a o seu discurso contém: “Vós sois a luz do mundo”. O que parece ser uma contradição é, antes, uma expectativa. Jesus afirmou a mesma coisa em relação a ele e aos discípulos porque esperava – e espera – que estes fossem, na realidade, testemunhas vivas de sua presença no mundo. Deus habita (cf. 1Cor 6,19) no homem pela graça batismal que é para o crente e que depende da fé. Mas também vive (Gl 2,19) no discípulo; e isso é graça para os outros, que depende da caridade. E é por ela que os cristãos se fazem presentes no mundo.
1. Cf. CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, Dei Verbum, n. 15.
Ronaldo José de Sousa
Cofundador da Comunidade Remidos no Senhor