No círculo litúrgico da Igreja, dentre todos os momentos ou tempos pelos quais passamos, está o período denominado de Quaresma. Em meio a tantos valores e caminhos que este nos favorece e simplificando o sentido da expressão, podemos dizer que são os próximos quarenta dias após a quarta-feira de cinzas, que encerra a tradicional e secular festa da carne (e por que não dizer, por causa dos desmandos das pessoas, festa do escárnio dos filhos de Deus) em que nos preparamos para mergulhar, entender e fazer uma experiência de salvação pessoal com a memória da paixão, morte e ressurreição de Jesus.
Não é que os outros dias do ano não sejam favoráveis a esta experiência de salvação, mas a Igreja nos proporciona um tempo mais forte que nos situa como filhos e herdeiros do Reino de Deus. É certo que muitos de nós já nos acostumamos que todo ano tem esses dias e até sabemos que é um tempo durante o qual se fazem mais penitências e em que ouvimos frases como a seguinte: “É tempo de conversão”. É bem verdade que também temos a tendência de normalizar e até banalizar grandes eventos pelo fato de se repetirem todos os anos, mas a questão agora é: em tempo de tanta distância da fé em que no mundo homens e mulheres se dedicam cada vez mais a si mesmos, se faz necessário que também homens e mulheres em todos os lugares se levantem e sejam luz, isto é, se levantem e mostrem ao mundo a beleza da salvação que Cristo nos trouxe. Esse levantar-se se inicia pela encarnação dos mistérios da paixão do Senhor, que, em seu corpo chagado, revelou ao homem uma nova e plena humanidade.
A Quaresma, ou seja, o caminho de purificação para vivenciar Cristo puro e ressuscitado, é um tempo favorável para ajustar o que, diante da Divina Providência, foi desajustado. O mesmo tentador, que se dirigiu sem sucesso a Cristo no deserto, continua semeando sementes de desarmonia e imoralidade, de inversão dos valores que são tão verdadeiros sobre a humanidade. Não conseguindo afetar a pessoa de Jesus, direciona suas artimanhas aos filhos mais vulneráveis de Deus. Uma vez que continuamos nesse deserto da vida e nos deparamos, quase que frequentemente, com oportunidades de prazeres, de posses e poderes, sem o poder da graça de Deus, nos enfraquecemos e nos tornamos mais acessíveis para as investidas do maligno. Essas investidas nem sempre vêm nitidamente vestidas de maldade, mas se escondem por trás de aparentes boas intenções. Começam pequenas e vão se avolumando até chegarem às metas do demônio.
A mãe Igreja em seus cuidados por nós faz esse trajeto ficar mais acessível quando nos dá direções e nos dá conhecimento de como chegaremos a essa plenitude da vida. Elege um tempo, dias mais dedicados a esse caminho. Apresenta pela força da Palavra de Deus a plenitude do que podemos alcançar e toda a feliz consequência da conversão.
Nunca foi o sofrimento pelo sofrimento. Nunca foi a humilhação pela humilhação ou inferiorização do ser humano. Sempre foi um magnífico processo de ajuste, de embelezamento, de equilíbrio da humanidade, pois o Deus feito homem mostrou que, como homem, é possível amar a Deus como Ele merece ser amado. O Deus feito homem, que é o homem perfeito, mostrou pelo seu sofrimento que nós, homens e mulheres e, portanto, filhos, por deixar de fora de nossas vidas pecados enganadores, podemos atingir a meta, o fim, a vida plena e feliz de filhos de Deus.
Mutas vezes, limpar nosso corpo e nossa alma de pecados é semelhante a um procedimento hospitalar que, para limpar feridas fétidas, é preciso esfregar, arrancar crostas e lavá-las ate deixar no sangue. Isso demanda coragem porque dói bastante, mas o resultado é a cura. Deixar vícios, deixar manias, deixar prazeres dói e exige muita renúncia, mas ao final estaremos felizes, leves e sendo testemunhas para esse mundo tão massacrado pelo pecado.
Também se faz necessário recordar que pecado é e sempre será pecado. É por pensar o contrário, que muitas coisas se normalizaram e deixaram de ser “tão graves” em comparação à forma como eram vistas antes, fazendo com que humanidade dê mais acesso ao inimigo de Deus para fazer o que ele não conseguiu fazer com o Cristo no deserto. Pensando assim, tomemos cuidado de fazer memória de o quanto os sacrifícios de Cristo são importantes para a nossa purificação, de o quanto é necessário vigiar pela nossa conversão todos os dias, de entender o quanto a Quaresma é um tempo favorável à nossa conversão.