Durante o período quaresmal, uma das práticas recomendadas pela Igreja é o jejum. Essa prática aparece na cultura bíblica como um sinal de pesar, de arrependimento ou um ato que acompanha a oração diante de uma situação de crise.[1] No caso da Quaresma, o jejum está associado à dinâmica do arrependimento a que somos chamados neste tempo que a Igreja nos reserva a fim de que trilhemos, com maior intensidade, a via da santificação.

Embora o jejum se refira à abstenção de alimentos, é preciso compreender essa prática para além disso, se não corremos o risco de transformá-la numa praxe religiosa esvaziada de sentido e sem produzir os devidos frutos de conversão para a nossa vida pessoal e comunitária.

Por isso, é preciso compreender que “o jejum não é uma simples renúncia, mas um gesto forte para lembrar ao nosso coração o que importa e o que passa”[2], conforme nos alerta o Papa Francisco em sua homilia durante a missa da Quarta-Feira de Cinzas este ano.

Compreendendo o jejum dessa forma, tomamos a liberdade de transcendê-lo para outras esferas da vida humana, além do que diz respeito à escolha alimentar, referendados pelo texto de Isaías: “Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi: em romper os grilhões da iniquidade, em soltar as ataduras do jugo e pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar todo o jugo? Não consiste em repartir o teu pão com o faminto, em recolheres em tua casa os pobres desabrigados, em vestires aqueles que vês nu e em não te esconderes daquele que é tua carne?”[3]

Pois bem! Não existe conversão sem uma reflexão séria e madura que produz o verdadeiro arrependimento. Baseados no trecho bíblico acima, talvez os questionamentos seguintes nos ajudem a fazer essa reflexão e a discernir qual é o jejum mais necessário à nossa necessidade de conversão:

  • Será que não somos tendenciosos a comprar demais e quando um irmão, “carne da minha carne”, necessita de algo, priorizamos as nossas falsas necessidades de consumo e damos um “não” ao nosso irmão?
  • Será que, nas nossas relações cotidianas, em todos os ambientes onde transitamos, nós não atamos o nosso irmão a um jugo quando não o perdoamos, criamos uma imagem distorcida dele a partir de um erro pontual e pior: denegrimos a sua imagem e não lhe damos a oportunidade de se redimir ou de crescer?
  • Será que, quando somos incapazes de acudir as necessidades daqueles com os quais convivemos, nas atitudes mais simples e corriqueiras, como, por exemplo, ajudar numa tarefa doméstica quando o outro está cansado, esse egoísmo não se caracterizaria como um ato desumano e, portanto, injusto, iníquo?
  • E quando estamos sempre com a razão e somos incapazes de enxergar as fragilidades, necessidades, limitações e possibilidades do outro?
  • E quando não damos o direito ao outro de pensar e escolher diferente de nós?
  • E quando a trave no nosso olhar já está instalada definitivamente que só conseguimos ver os defeitos do nosso próximo?
  • E quando, quando, quando…

Essa lista de reflexões é interminável e ela pode ser completada por nós a partir das nossas realidades pessoais.

A intenção é que essas breves reflexões nos ajudem a compreender que jejum devemos fazer, concatenado com o jejum de alimentos: jejum de acumular o desnecessário? De ressentimentos? De maledicência? De julgamentos? De egoísmo? De achar que somos os detentores da verdade? De intolerância? De acusações, etc.?

Somente assim podemos “quebrar toda espécie de jugo” e não nos desviarmos daquele que é nosso semelhante, de modo a praticar o jejum que agrada a Deus que consiste, conforme ressaltou o Papa Bento XVI, em “comer o ‘verdadeiro alimento’, que é fazer a vontade do Pai”[4].


[1] McKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1983

[2] https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-03/quaresma-jejum-magisterio-papas.html

[3] Is 58,6-7

[4] https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-03/quaresma-jejum-magisterio-papas.html

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